Ana Lúcia

Ana Lúcia

Camila tinha certeza: seria daquelas feministas radicais, abolicionista ferrenha, se ao menos um gato morto tivesse que fosse pra puxar pelo rabo.

Desprezava as putas, detestava os homens tacanhos e mesquinhos que as contratavam – que a contratavam. Deles, só queria duas coisas: o dinheiro, e que gozassem logo – o líquido pegajoso escorrendo pelas mãos de ossos aparentes, unhas curtas e bem cuidadas, dedos finos. Corria a lavá-las, “só um minutinho, amor”, corria até o banheiro e voltava pra cama a contar-lhes mentiras sobre a faculdade onde nunca pisou e os livros que nunca pretendeu ler.

Ah, se ao menos um gato morto tivesse tido um dia na vida pra puxar pelo rabo! Mas não. Camila se vira atrás de dinheiro desde que se conhece por gente, o pai entrevado naquela cama, a mãe… A mãe não aguentou, encontrou alívio e morte numa caixa qualquer de tarja preta. Sem bilhete, sem explicação, mas explicação não precisava depois de tudo. Sobrou Camila, de quem as irmãs nem queriam saber – aquelas putas!

A mão gordinha do homem subindo por entre as pernas, desajeitada. A inveja da filha da dona Coisa, que podia estudar e fazer estágio e ir a festas frequentar teatro entender de cinema, ainda por cima tinha a mãe pra lhe cuidar as roupas e zelar pelo bom sono. A filha da dona Coisa, a que se metia nas passeatas. A filha da dona Coisa, a que nunca precisou nem precisará tirar a roupa pra homem nenhum do mundo por dinheiro.

A Inveja.

A dona Coisa orgulhosa da filha, que organizava passeatas contra a prostituição. “Essas pobres dessas moças, e essa pouca vergonha toda, isso tem que acabar!”. As fotos, os cartazes, a tinta.

Vermelho sangue. As colegas putas não gostaram:  as pichações violentas manchando as paredes, justo na rua em que se viravam atrás de uma mixaria qualquer pra levar pra casa no fim das noites. Também as colegas não tinham onde cair mortas. Mas gostavam do ambiente, da bebida, das luzes, apesar de. “Melhor que limpar banheiro de madame.”

Camila, não.

A mão gordinha subindo por entre as pernas. O líquido pegajoso escorrendo pelos dedos finos de unhas curtas e bem cuidadas, ossos aparentes. “Só um minutinho, amor”.

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MoniquePrada

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